Voz-Off
Persiste. É só mais uma tentativa. Acaba já tudo. Não mexas uma palha. Aceita que hás-de trazer o mesmo ar aborrecido, com que saíste, de volta a casa e que é um revés menor, insípido — é regressar igual, sem perder nada ou talvez apenas o dinheiro da viagem e do que beberes. Não comas. Almoçaste tarde e ainda ficas com alguma coisa nos dentes. Tens uma facilidade invejável para te embaraçar com pouco e basta uma azeitona a que não resistes para te estragar o sorriso. Está estudado que a esmagadora maioria das pessoas se abstém de anunciar esse infortúnio que é a comida nos dentes quando exibes um sorriso.
Dá meia volta, vês o teu rabo? É menos cimeiro que há dois anos e será menos ainda daqui a três, dez. Paciência. É o tempo e a tua forma de luta contra ele, neste momento, é o atraso. Onde puseste as chaves, outra vez? Estas calças não. Troca. Apareces mais tarde mas sem uma réstia de vergonha, sem um grão de fragilidade, tudo oferecido pelo que escolheres vestir a par com a vontade de te mostrar e do orgulho de ainda te apreciares apesar de mim, voz de quarto escuro que nem quando dormes se cala. Ouvindo-me ou não, prossegues. Sou a tua voz interior.
Tu queres viver esta aventura e comprometeste-te com a moça. És mulher de palavra mesmo que, já tão perto do encontro, fiques em sentido, em flecha. As borboletas voam e os pássaros levantam em bando pressentindo o perigo de tanta comoção. Alerta como uma amazona. Só tu saberás como abrir a porta daquele café com o triunfo de heroína montada num cavalo de pedra. Ninguém poderá desconfiar que vais tombando do dorso do teu espírito.
Tu já fizeste muito, só que ninguém sabe.
Ainda não escreveram sobre ti para que se saiba. Tu, sim, escreveste, embora ninguém te tenha lido e continues consternada com o anonimato, como se fosses de uma grandeza para a qual o mundo é um sapato apertado ou umas calças que te dividem o intestino a meio, por fora, numa fronteira marcada “na cintura!. Mas essas não são as calças de hoje. Hoje vais solta, vais leve, resfolega. Hoje marimbas-te para o que não foi e poderia ter sido. Calcorreia o teu armário só com as pontas dos dedos enquanto fazes a equação em que aquela camisola de malha, ao quadrado, sobre camisa engomada dividida pelo laranja da saia resulta num corpo quente encostado ao teu. É isso que queres, um encosto quente? Não te bastariam os gatos na cama?
Sabes que é inteligente e divertida, não queres saber o seu emprego e róis-te para conhecer como se mexe, como leva o cabelo ao sítio dele, se roda o pé do copo, se é sôfrega, se olha nos teus olhos sem fugir, se sabe esperar já que estás atrasada com tanta matemática. O teu pai esbofetear-te-ia por esta ideia. Sorte é ele estar quase tão morto quanto longe e podes dançar sobre uma campa que já cá tardava. Hoje enterras a fobia dos amores infrutíferos, do que te ensinaram ser vício. Será que te podes rir do pai agora que falhaste todos os homens bons e maus que ele nem imaginou? Não abandonaste o lar por causa disto: sabias gostar de tudo menos de ti.
Enfia as botas, está calada. Nem estas paredes te ouvem. Opera tudo por dentro, discretamente. Por ora sabes os segredos de duas geografias e és empurrada com evidência para uma. Trilha a fralda da camisa, encolhe a barriga, puxa a camisa um pouco para fora. Esquece a camisola, vai com o casaco aberto. Será que vais cegá-la com o teu coração a arder de mistério?
Já estiveste neste lugar mas com homens que são coisa fácil de apanhar e agradar e dão filhos. Será que, por se encerrar a tua capacidade reprodutiva, o teu pragmatismo utilitário redigiu a alforria da tua sexualidade? Serão as mulheres que beijaste o túnel secreto para esta? Até para o desamor geral estás preparada e tens a sorte de ser mais fácil sair debaixo dessa pedra no peito agora. Há muitos que continuarão a gostar de ti, não temas o abandono. Aquele que te ensinou essa miserável palavra está longe, relembro-te, distante como um ilhéu novo e portanto poderás habitá-lo como bem entenderes. Querias ir para uma ilha aprender poesia com elas e parece tarde. Ou não, nunca é tarde e, porém, estás atrasada. Já nem cavalgando chegas ao café a tempo. Ainda bem que já não vamos de cavalo de pedra. Se ela não gostar de ti, tenta resistir. Por alto, devem existir uns três biliões de pessoas de quem poderias gostar e nem sabem que existes e diz-se que a indiferença é o sentimento que mais dói — pergunta ao teu desejo e confirma.
Olha o espelho e percorre a tua cara. Dá folga à noção de que a decadência se vem sedimentando na tua pele e de tanto rir e chorar os teus olhos são sóis pequenos, de raio curto, para onde esperas que ela olhe sem fugir. Alto! Também tu não deves querer fugir dos seus olhos. Não te forces à ilusão de cumprir uma possibilidade esperada por outrem. Não te percas no faire plaisir digno de governanta que nada exige para si além do reconhecimento dos seus serviços. Por uma vez, não estejas ao serviço de ideias que te apertam. Sai e inventa-te.
Estás com a impressão de que a rua sente a tua felicidade ansiosa. Terá sido por isso que te abriram a passagem enquanto te dirigias à estação. Sorris com esgares de tonta entre as notas desta música, à espera que ela esteja a tamborilá-la na mesa enquanto a trauteias a caminho. Espero que o teu compromisso contigo não peque por tardio. Espero que finalmente compreendas uma curiosidade tão futura que chegou o dia depois de umas décadas.
Espero que reconheças a mulher que desejas ver e que te espera no café. O café também não é assim tão grande para que percas o horizonte. Ainda nem a viste e já te apetece lançar os braços em seu torno, cheirar o que aí couber e coligir passeios a duas. O tempo das novas cartas em português, curtas e eléctricas, tem agora um destino e é o café onde a luz da tarde é quente e as partículas de pó douram a entrada. Faz parecer que um conto de fadas é um sítio onde o espanador está de férias mas sigamos, sem achaques nem de governanta nem de dama aflita. Continua a controlar a respiração e passa a porta: chegaste. Agora que a vês, acalma-te e dirige-te a ela. Está entretida com o telefone, provavelmente a distrair os minutos a que faltas na cadeira à sua frente.
Clareio como o fim de uma tempestade. Arrasto a cadeira de mansinho e ela levanta os olhos — não fogem. Fixadas uma na outra sinto-lhe a camisola de lã, cheira a lavanda e a sabão de Marselha. Os meus olhos fecham por uns momentos enquanto me agradeço por ter saído de casa, sobretudo do quarto escuro onde uma voz me adia. Sento-me, perguntamo-nos como estamos, peço desculpa pelo meu atraso sem fingimentos. Finalmente estou ali, prostrada perante a evidência de tanta familiaridade. Discutimos duas ou três trivialidades sobre o espaço e agarramos a ementa. Não pedimos o mesmo e aprecio as escolhas com intenção de partilhar o que não se experimentou ainda.
— Desculpa mas reparei que tens baton nos dentes, entre o incisivo e o canino.
Sem embaraço, apaguei com o dedo a intrusa mancha e, como uma princesa a quem deram um condado, sonho com cabelos compridos no ralo da minha banheira e peço azeitonas para ajudar o vinho. Nunca este rabo foi tão confortável e iremos embora sob a decisão do acaso. Ela não roda o copo: endireita a toalha e dobra-a entre os dedos, alternadamente. Tem o cabelo longo e solto, inclina o rosto sobre um lado para continuar a ver-me com toda a amplitude. As borboletas provam o néctar e os pássaros estão a sul.