deixar de fumar

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Há aqueles momentos sem dono ou piedade de saber o que fazer a seguir. Enquanto nada ocorre, fuma-se um cigarro e pensa-se no fumo que entra e sai ou, nem se pensa nele, só entra e sai. Vem a respiração materializada como só o inverno consegue e há, então, um inverno ininterrupto até à beata, sem o frio pagão de estar em pé, em frente ao mar, vestido de sol.

Há também o momento que antecipa uma tarefa indesejada ou pouco querida, uma inquietação que não sabe o que fazer com as mãos, que quer fugir dali, da frente do que há-de encarar-se. Uma pausa na obrigação.

O cigarro é rebelde. Não quer fazer, caga-se na biologia e na farmácia, no dinheiro e no fôlego. É proprietário das suas próprias seduções, sacode para as costas a juventude. O cigarro envelhece mais do que amadurece mas é prelo das ideias e repete-as, conversa-as, desfia-as e o último nunca será tão bom quanto o primeiro.

Mais que o tabaco, são os fumos. Quantos fumos diferentes fazem de nós seres alter-conscientes, de porta fechada, o fumo que embate nos dentes e sobe ao nariz. O tabaco é quarta-feira de cinzas, sempre. É da festa que acabou e da que ali começa. É dois dedos de conversa, é dois dedos de promessa, entre dois dedos de camuflagem etérea. Tanto de cá para lá como de lá para cá, fumo é matéria do mistério, do império, do alheamento – já que ficar por cá é carregar de descontentamento os perfeccionistas.

Mesmo os rudes de jeito são exímios pregadores de cortinas a arder os olhos. Pouco querem saber de si, oferecem-se à secura de uma velhice antecipada por essa cara inquieta.

Os cigarros são da gente que não espera. Junto com um acabado de acender vem o autocarro, a vez nas finanças, o telefonema aguardado.

Atrás de um cigarro está uma boca aberta, inconsolável, a embeber-se em massas aéreas de perfumes desolados, mal olhados, sem destilação possível.

É difícil deixar de fumar porque sou uma solitária e um cigarro nunca vinha só. Nas salas do mundo, saía com ele. Dançámos juntos e até acabámos nas camas dos amantes exaustos, a ir ao tecto em golfadas generosas.

Deixar de fumar não é uma prioridade racional, é medo da doença. Não é um hino de coragem ainda que seja uma liberdade abdicar dele. Há tanta liberdade na abdicação que não me contenho e apetece-me saltar-lhe às ventas. A liberdade não tem vergonha de excluir os vícios, de matar a inutilidade e, sobretudo, de eleger a sobrevivência bem gerida como o último reduto de uma inteligência feliz.

É difícil deixar de fumar porque muito tempo fui infeliz e preciso de tempo para pensar nisso. Fico contente por subir a D. João IV sem pânico respiratório, nem latejos coronários nas têmporas, não sendo já grande amostra de inclinação. Se pudesse ter tudo, estancaria no topo para fumar um cigarro junto da Cooperativa dos Pedreiros.

Os cigarros das manhãs são os piores para os conservadores biológicos e os melhores para quem quer ausentar-se dessa linha de montagem da saúde – o garante de servirmos mais tempo.

O cigarro, até na recusa da serventia, é rebelde, mas as dores de carregar uma botija de oxigénio acordam-me a preguiça de acender mais um, aquele que arderia agora sem pensar duas vezes. O cigarro não é prudente nem lhe cabe tal fado.

Menos prudente ainda é adicionar-lhe delírio ou elasticidade imaginativa que é como quem diz, estupefacientes. E ficar deveras estupefacto ao entrar dentro de si numa porta mais.

Um cigarro, era o que precisava agora para mitigar a irritação crescente de ter alguém em casa que, por ser inverno e as portas encarcerarem o calor possível em cada divisão, vai de porta em porta nas pequenas tarefas e o barulho baralha-me as ideias que um cigarro decerto trancaria. Mas não, não há cigarro que me ajude a ignorar um convite prestes a  arrepender-se, – para mais tendo-se antecipado uma hora ao previsto – cujo telefone toca como um cigarro mal apagado, a que se tem de voltar e afundar no cinzeiro com mais veemência, sob os dedos que não querem a parte mais cristã da vida: a que não se fuma e que dizem, em altos fogos, saber a caramelo.

Deixar de fumar é difícil porque, à falta de aspirações tinha-se expirações e inspirações que demoravam quatro minutos. E mesmo os cigarros mais amargos, do fim da vida de fumadora, punham-me a pensar no próximo e como seria bom se fosse mais calmo, menos tenso, menos compassado pela escapadela do escritório.

Fumar é difícil porque tenho tido pouco respeito à vida. Não porque a vida me faça desfeita mas porque sei ser tão finita que me decido por ela depois de acender um lume, um pequeno lume entre mãos que passo para a boca e depois para aqui dentro.

Fumar é fácil porque tenho um poste portátil que me faz sombra, onde me escondo, onde me protejo, onde me entretenho nas visões menos gerais, mais recortadas sobre o desejo.

Fumar fazia-me pensar como tinha tempo para gastar sem fazer nada e, quando ocupada, fumava na mesma para diminuir a importância da ocupação. Podia fumar fazendo de tudo, mesmo as muitas coisas que se podem fazer sem fumar.

Fumar é individualista, é dos que não querem saber se o ar é matreiro porque de escape ou cinzeiro.

Esquecer fumar é difícil porque não há poesia nem cinema que se leve a sério sem a sua imagem desleixada de eternidade.

Fumar é difícil porque agrava a voz e poucos sabem como é possível cair de amores por uma voz na rádio, muito provavelmente de um fumador convicto, escondido atrás de pigarros e tosses menores. Tossir dá solavancos à respiração que, sendo de si tão natural, fumar a torna mais humana, mais real, mais errada, mais própria.

Fumar é uma merda porque deixar é uma grande bosta.

E não é porque seja bom, é porque não tem moral nem fim. É um vício dentro de mim.

A contrição somente perante a grávida fumadora, que sonega em segredo a liberdade de não querer ser do ser independente. Os meus problemas são muito meus. Deixar de fumar é difícil porque não estou grávida.

Quantas canções purguei nas mãos, quantos corpos cilíndricos me saíram dos dedos sem nunca ter feito maquetes nem escultura. Perfeitos túneis de olvido e maresia empacotada numa mortalha. Quantas vezes usei filtros sem que nunca mo tivessem exigido e quantas palavras foram travadas por eles na hora de desferir um mal sinistro.

Mas subo a Fernão Magalhães e converti-me a um palito. Uma múmia, um fóssil, o mínimo que se pode ter da memória física de fumar. Pelo menos não é um pequeno bastão de plástico usado para mexer os cafés da modernidade. É um sólido cilindro aguçado, sem expressão aérea e que bate boca, ensopado de bagaço.

Nem sei como se lê sem fumar e quero eu voltar a estudar.

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