Timeless
Texto de apresentação para a exposição de Philippe Pasqua no Palácio Nacional da Ajuda que nunca existiu.
O Palácio Nacional da Ajuda recebe Philippe Pasqua para uma exposição de arte contemporânea.
“Timeless” é o nome deste encontro de vanguardas do século XIX e XXI.
Philippe Pasqua é um vulto maior nas cordilheiras da arte de hoje.
Francês de origem, fez-se artista plástico auto-didacta desde a maioridade. Cerca de trinta anos passados, é uma montanha movediça entre continentes, grande como a escala das obras que produz e expõe.
Integra-se na tradição da pintura e escultura figurativas embora represente emoções evocadas pelo modelo e por ele mesmo, à procura da vida, do acidente e da magia. Se alguma coisa se vê da morte é puro exorcismo. Todo o seu amor pela pintura deve-se à paixão incondicional pela vida. No limite, dir-se-ia que a sua obra é um interminável auto-retrato, do presente contínuo do artista, tomando sentido além da pele e até ao osso.
Encara rostos e corpos com uma violência sensível, avançando e recuando em relação aos gigantes de tela, trepando escadotes até aos topo das figuras, saltando de um humano ao outro, seja ele carne ou esqueleto. As imagens surgem enérgicas em camadas intuitivas, perfilando os retratados enquanto monumentos à vida, uma que se constrói organicamente à medida que a matéria se acumula, nas aproximações e recuos da abstracção à coisa concreta.
Cegos, portadores de trissomia 21, transexuais, amputados, prostitutas ou pessoas comuns são celebrações de beleza urgente de que Pasqua é anfitrião. Olham-nos de cima com a dignidade dos deuses e da vida eterna.
Todos os modelos são guardados em instantâneos que lhe servem de mapa às investidas armadas de tinta. Todos eles são carne revoltada a cada pincelada furtiva, volumes rasgados no branco a comparecerem invariavelmente no sítio exacto. Se há escorrimentos do acaso são prova da demanda pelo incontrolável, de uma pintura sem arrependimento ou medo.
A convulsão dos corpos, entre as cores de vida e de morte, fá-lo vizinho histórico de Francis Bacon, Lucien Freud ou Egon Schiele, embora seja de Jenny Saville que se diz mais chegado.
Carros cobertos de pele e tatuados são mais uma forma de continuidade do trabalho em torno do corpo.
A exaltação do presente desta vita brevis demonstra-se igualmente nas borboletas em bando, ora livres sobre a tela, ora pousadas sobre crânios — sejam verdadeiros, coleccionados e alterados por Pasqua, sejam nos que esculpe em dimensões colossais.
Os animais — de estimação, extintos ou mitológicos — juntam-se à constelação de estrelas cadentes de Philippe. Há também incursões escultóricas na botânica, com desmesura e transformismo material, frequentemente metálicas para que nos reflictam e ganhem as características do ambiente em que são implantadas.
Sol, natureza e sossego foi o que procurou ao mudar-se para a Malveira da Serra. Tomou Paris, Nova Iorque e agora Sintra. Rodeado de árvores e sob camuflagem, construiu um enorme atelier, espaço integrante da sua obra que alberga a conversação permanente entre o artista, a criação e o mundo exterior.
O Palácio Nacional da Ajuda convoca às suas salas o universo de Philippe Pasqua.
A reunião advém do paralelismo entre o vanguardismo de D. Maria Pia, da sua sede de novidade e inclinação contemporânea, e essa mesma alegria de viver que encontramos em Philippe.
A rainha, para lá da mais bem vestida da Europa, era uma exímia negociante internacional e mãe extremosa. No sangue corria-lhe a magia da vida identificada no bom gosto e nas acções, testemunhados pelas suas escolhas decorativas, pelas notáveis festas que organizava, pela generosidade que votava aos mais desfavorecidos.
Os salões da Ajuda, saídos dos catálogos do que melhor se produzia nas tendências do século XIX, são o ambiente que acolhe o interessante diálogo entre o ambiente nostálgico de uma contemporaneidade ida e a contemporaneidade vibrante de um dos actuais príncipes da arte internacional. Conversam na linguagem da arte, falam-nos da intemporalidade dos que se querem nossos e para sempre.
Tanto D. Maria Pia quanto Philippe Pasqua constarão certamente nos relatos escritos da posteridade. O poder das artes sobre a eternidade não poderá mais ser-lhes retirado.
Um passeio por “Timeless” revelará pontes de um século ao outro. Entre outras peças, encontraremos a mão de chumbo de Pasqua pregada a uma base de madeira na Capela. Na Sala de Bilhar, uma criança olha entre dedos os fantasmas que por ali jogam. A Salinha dos Cães guarda Purdey, o animal de estimação do artista. A Sala do Despacho é vigiada por um cego e na Antecâmara de ares orientais há um samurai de sentinela. À distância que vai de D. João IV aD. João VI corresponde uma última ceia e um Lamborghini. As Vanitas distribuem-se pelo Palácio. Encontrar-se-ão árvores metálicas, pessoas cristalizadas e um dinossauro.
O convívio anacrónico entre o melhor de cada uma das épocas far-nos-á redescobrir o legado da rainha e do artista. “Timeless” é a tradução deste espírito intemporal que os atravessa com os olhos postos na eternidade.