Carta Aberta à Juventude
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Acabo de te abandonar sem que te perca o rasto.
Os 31 anos que levo desta vida não me deixam ser tua. Os intervalos da estatística separam-nos os corpos mas nada podem fazer quanto à sede da vida que nos terá por companheiras.
A verdade é que não se pode ser adulto de facto sem poder antecipar os dias e não há coisa que mais os obscureça e me faça sentir imberbe que a cortina que pousou sobre eles.
Eu nem tinha grandes planos. Gostaria de ter uma casa; um trabalho que desse dinheiro para livros, cinema e música; cozinhar pitéus para amigos e brindar-lhes a companhia; poupar para velha; viajar de quando em vez; uns sapatos confortáveis para passear.
Na saúde penso pouco porque a vou tendo e à educação tive o direito público antes que Bolonha tivesse atacado.
Até há pouco, nem pensava constituir família que é preciso cuidar dela uma vida toda, sabe-se lá como, e eu tenho tanto para fazer. Cresci a sobrevalorizar a profissão com sucesso.
Porém, tenho-te visto nascer, Juventude, sobrevivente da ruína social, fruto dos amigos atirados ao amor entre si, e, porque nasces no mesmo dia que o Futuro de Liberdade, não há outra criatura em que deposite mais esperança e que me traga mais frustrações.
O Futuro tem sido todos os dias.
Em 1983, nasci durante a segunda intervenção do FMI em Portugal. Tinham passado apenas seis anos da primeira e do pedido de adesão à CEE, três magros anos volvidos sobre a Revolução dos Cravos. Em 1985, Mário Soares assinou o tratado de adesão ao que agora conhecemos como União Europeia. Isto significa que este país, e eu, conhecemos bem as amarras recentes ao desenvolvimento económico e que nunca se instalou a mudança que Abril prometia, apesar das melhorias estatísticas relevantes no que se reporta ao serviço público. Haverá força nos mais fracos?
Os meus pais de tudo fizeram para me criar e permitir a licenciatura que julgavam ser sinónimo de emprego qualificado e estável. Não sei se já trabalhas, Juventude, todavia é o que a sociedade de ti espera se queres pertencer-lhe. Cuida do teu Futuro hoje.
A estabilidade económica é tão importante como um degrau que permite o próximo passo. Até a União Europeia tem gritado por ela. Enquanto os meus pais a desejavam porque nela viam a possibilidade de emancipação – pela minha liberdade e pela deles face a constrangimentos materiais, a U.E. aclama a estabilidade de refém mantendo a trela curta aos povos guiados por números incompreensíveis.
A estabilidade para a emancipação vem do trabalho que se faz em conjunto.
Há um título de romance austríaco do século XIX que ficou famoso pelo uso nazi. Nesse livro, um homem de jogo descobre a virtude pelo trabalho. O senso comum sabe que “o trabalho liberta” das condições materiais e talvez, por esta razão, se torne tão insidiosa a frase de acolhimento em campos de concentração onde judeus morriam, mais que ao trabalho, à insuficiência de condições e objectivos humanistas para o desempenhar. As condições de trabalho andam escassas para quem quer ser feliz.
Hoje não há letras de boas-vindas mas um eco fascista sobrevoa-nos escurecendo o céu da Europa.
Hoje são os impostos sobre o trabalho, e a desvalorização dele, que hão-de libertar-nos de uma dívida que não criamos nos campos de acumulação do Euro.
Hoje é o desemprego que nos impede de nos libertarmos da dívida, mesmo contestando a injustiça da cobrança de uma dívida feita por capitalistas e não por proletários.
Hoje, se não puderes pagar a formação, porque faltam trabalho e dinheiro, há um banco que te empresta para que depois, em juros e obrigações, vás trabalhar em qualquer coisa para pagar o teu direito à Educação e sais da escola já endividado.
Hoje o momento alto da tua educação e companheirismo é prostrares-te de quatro, sem nome, e aprender a subserviência e a hierarquia do uniforme.
Hoje, Juventude, é o estágio não-remunerado a tua ambição no fim do curto curso que mal te prepara para que depois compres os mestrados e os doutoramentos para trabalhar, quando deverias estar a estudar para aprender a pensar duas vezes.
Hoje resignas-te a trabalhar de graça para os outros. Estás para o teu patrão como o burro para a cenoura e reverencias quem te monta.
Hoje aceitas que ninguém te dê valor e que o compromisso contigo seja precário, porque o capitalismo destruiu postos de trabalho para impôr salários baixos e qualquer coisa que agarres é melhor que afogar-te na mágoa de ser inútil para consumir.
Hoje o respeito pela tua dignidade chamam-lhe empreendedorismo, sem que nunca te expliquem de onde vem o dinheiro e a competência para investir e que, o mais certo, é arrastares a tua família ou as poupanças para o crédito que contraíste aos mesmos banqueiros que liquidaram o emprego que irias ter.
Hoje vives com os teus pais ou voltas para casa com idade para ser mãe.
Hoje tens por certo que a vida possível é a de um refugiado sem guerra à vista e que, contudo, te faz vítima expatriada. Até te parece bem emigrar já que és tão nova e a experiência é boa. Talvez tenhas ido para a Alemanha aproveitar a caridade de ganhar quatro vezes menos que um alemão.
Hoje esqueces que a U.E. tem origem no comércio do carvão e do aço e sentes-te abençoada por não ser obrigada a mostrar o passaporte na fronteira, embrulhada na ideia revolucionária de que os Estados são irmãos e vivem em paz.
Hoje és a tampa de saneamento no meio da calçada onde políticos e outros corruptos passeiam os cães de fila que guardam os teus pais e juízes.
Hoje, Juventude, crês que a democracia é um engodo, que não te representa e fito-te as costas voltadas à pátria que te pariu. Julgas que participar é indiferente e que Eles são todos iguais.
Hoje abstens-te como humanidade livre ainda que te cerque o azul estrelado.
Hoje parece-te que viverás sempre e os velhos cansados são chatos e não te compreendem. Para o diabo com a saúde, para o inferno com as reformas! Que tudo seja privado e, com o emprego que para aí se gera, reza para conseguir pagar a quimioterapia por mais um dia e ter pão quando te faltarem os dentes.
Hoje encolhes os ombros à privatização de tudo, desde a água para beber à electricidade que carrega o teu telefone esperto e o que era direito passa a dever de pagar. Reclamas que o Estado tudo gere mal preferindo culpar a soberania pelos negócios mal-parados de meia-dúzia de maus gestores que entram pelas portas de fundo dos concelhos de ministros antes do anúncio de medidas de austeridade.
Hoje, nem movimentar-te poderás porque os transportes são para render em SWAP’s e as pernas são de graça para quem as tem ou não vive longe do que precisa.
Hoje, o melhor que consegues é low cost ou marca branca e sentes-te rico com a política do desperdício e desprezo.
Hoje tens o olhar envenenado dos que perdem e querem que o resto se perca como eles.
Hoje talvez percebas que os teus pais confiaram demais no “Depois do Adeus”, não foram a Grândola porque esteve sempre ali perto e foi ao lado que lhe passaram.
Estes 40 anos, Juventude, deram-te a liberdade de caixote de areia, a democracia de hora marcada e a propriedade a crédito. Afeiçoaste-te à culpa que os teus pais te ensinaram por terem adormecido a más horas em cima dos carris da alta velocidade especulativa.
Hoje, a cor da Revolução está comida pelo sol das alvoradas de leste mas lembra-te que aqui o sol se põe no Atlântico de onde nem o peixe é teu.
Por isso, hoje, vira as costas à União Europeia que a Europa continua cá amanhã.
Hoje pensa no amanhã em que a tua casa será para ti e menos para o aluguer aos turistas que aumenta a renda que deverias conseguir pagar sozinha. Quiçá possas pôr os teus filhos, se os puderes ter portugueses, a dormir na vertical alinhados com o poder.
A Juventude que conheci sonhava com a mudança que supunha trazer, ainda que imperfeita e devagar, a igualdade de circunstância social. Desconheço revolução que tenha avançado sem essa tua força, Juventude.
Amanhã poderias ter tudo o que tens hoje e melhor. Não percebo porque recuas, porque baixas os braços e partes antes que o tempo acabe. Ao menos não te faças provinciana nas capitais do mundo e usa o voto que chega aqui.
A idade tira-me o sono, nunca o sonho. Quero paz, pão, habitação, saúde, educação e tudo o mais que precisemos juntos para sermos livres. Um projecto de emancipação individual apoiado no conjunto, a ressoar movimentos populares que cismam crescer noutras nações contra o capitalismo, como o que pratica a U.E., que vai amordaçando os ventos contrários à sua palavra.
Dou-me por Virgínia Valente, sou activista política independente, sem horários nem honorários.
Luto por medidas de alteridade contra a austeridade que nada cria. Quero manter e ampliar as conquistas de Estado que fizeram de mim pessoa sem ter quase nada com que pagá-las, nem que para isso tenha de rejeitar a União Europeia. Não admito a ideia de pobreza na era das máquinas nem tolero a espoliação dos recursos do meu país.
Tentaram apagar as classes e continuo proletariado. Tentaram apagar o género e continuo mulher. Tentaram dilatar a juventude porém o tempo é padastro e tornei-me adulta.
As classes, o género e juventude extinguir-se-ão muito depois de mim.
Preciso de um partido para participar na democracia, um que defenda abertamente a liberdade, a participação popular e a independência nacional como degraus necessários à construção de uma nação global.
Hoje, ao deixar a minha juventude de cartão de cidadão, apelo pelo surgimento e apoio aos cidadãos-média que, ao dia de hoje, são capazes de representar mais de nós pelo que fazem e projectam que qualquer programa político. Apelo pela chegada dos seres espectrais que são por muitos, os seres de amanhã todos os dias.
Devolve-te o futuro hoje, Juventude. Ainda não estás velha para isso.