Um Ovo de Colombo às Turbas

Um Ovo de Colombo às Turbas

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Um Ovo de Colombo às Turbas

Por cá me enfiei de avesso quando o anunciaram. Sem nunca ter perecido sucumbi ao som da guilhotina das portas a fecharem-se sobre o destino. Fiquei do lado de dentro.

Lá dentro resta olhar, reduzir-se à ínfima parte de si, apoiado no que se é e tem. Quem não tratou de si a tempo, restou encurralado em contra-pé. Mesmo os que trataram, continuam encurralados ainda que o curral seja diferente. Uns são mais ensolarados e a lama seca, as pegadas esculpem a solidez de rajada e verões de rebolar. Outros quedam-se húmidos, de pés feitos âncoras, fundeados na tepidez de cansaços incógnitos.

Uma impiedosa guilhotina demarcou o possível do impossível, uma recta a direito nas curvas da vida. Não interessa que nada fosse realmente bem nas contas gerais das rotações. Antes de a lâmina nos ter apartado, já muita folha seca se acumulava na sanja. A aceleração das transações e transmutações conduz-nos. Guie-se per diem e haja calma: tudo passará.

Este astro comporta-se como a centrifugadora-mor da luz e da sombra até tudo se tornar pardacento. Não admira que cresça o ímpeto de sacudir os tecidos, dobrá-los em quadrilátero, evitar as irregularidades das peles – até mesmo fazer da Terra um lugar chato – e guardar tudo numa gaveta, muitas gavetas devidamente etiquetadas no armário da tralha e fechá-lo a medo, à espera que desapareça.

Não admira que o maniqueísmo e as delimitações cresçam em abastança, como quem esbraceja para evitar que o cinzento aterre na pista de qualquer corredor de fundo ou se emaranhe nas linhas de qualquer marionetista de topo. Estes assistentes de movimento não controlam mais que a largura dos seus braços ou a direcção do seu olhar e sobra-lhes a natural inclinação para andar às arrecuas acompanhando um vôo a pique. Terminado o programa, num clima de domesticidade trágica estende-se na corda da marquise a aversão à humanidade, prostrada e marmórea como uma pietá que descobre uma malha vermelha na máquina quente dos alvos lençóis.

Olho para dentro, para o umbigo. Abandono a culpa de olhar só para mim, para aquele ponto que lembra onde tudo começou e me liga ao astro. De como fui projectada a partir de um pequeno ponto no fluxo das vidas que não conheci e que assim continuo, hoje, com uns conhecimentos a mais porém nem por isso menos prontos a eclipsarem-se no terreno, recortes enfiados num fio de beque. Este tempo não está para conspirações nem razões. Refugio-me na imaginação para inventar horizontes sobre uma porta fechada, enquadrados pela documentarista de uma expedição hidrográfica à minha fossa mariana. Olho para o fundo, radiografo o quotidiano, o infinitamente largo, o corredor escuro que conduza àquele fôlego de quem atinge a superfície em esforço.

Confundo os dias e ainda bem. Fazia-me falta outro tempo em que os pudesse distinguir de fresco. Não fosse o batente e menos saberia do calendário anestesiado. Está lá como metrónomo, a regular o compasso de pascoar. Salve-se quem descompassar na guilhotina e ficar do lado de fora quando a porta deslizar à velocidade de uma viagem a Marte.

Avisto um planalto profundo pronto à imersão, uma estufilha oceânica de onde emergir em cordão humano, urdidura de feixe menos interrompida ou agastada. Costura social, da alta ou prêt à porter desde já! Invoco a luz de antecâmara e que se desenrole a acção do teatro de sombras. Estou na pista de um micro 11 de Setembro, tão privatizado que pareço estar só. Esbracejo até dançar… que se dane o avião. Veleiro no vinho, sereias nos braços, saudades nas velas à mercê do vento e o futuro ser do astro que o parta.

A propósito de para onde olhar, proposta de Pedro Nora, para que se fizesse uma das Aberturas n’As Indecisões de Janus. Um livro de belo desenho.

ed. Fojo, 2021

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